“Esta canção ardente”: “Quenguelequêze!” de Rui de Noronha
Posted: October 1, 2013 Filed under: Portuguese, Rui de Noronha | Tags: Poetas africanos Comments Off on “Esta canção ardente”: “Quenguelequêze!” de Rui de NoronhaRui de Noronha
(poeta e contista, Maputo, Moçambique, 1909 – 1943)
“Quenguelequêze!”
.
Durante o período de reclusão, que vai do nascimento à queda do cordão umbilical das crianças, o pai não pode entrar na palhota sob pretexto algum e ao amante da mãe de uma criança ilegítima é vedado, sob pena de a criança morrer, passar nesse período defronte da palhota. O período de reclusão, entre albumas famílias de barongas, é levado até ao aparecimento da primeira lua nova, dia de grande regozijo e em que a criança, depois de uma cerimónia especial denominada “iandlba”, aparece publicamente na aldeia, livre da poluição da mãe.
.
Quenguelequêze!… Quenguelequêze!…
Quenguelequêêêzeee
Quenguelequêêêzeee
.
Na tarde desse dia de janeiro
Um rude caminheiro
Chegara à aldeia fatigado
De um dia de jornada.
E acordado
Contara que descera à noite a velha estrada
Por onde outrora caminhara Guambe
E vento não achando a erva agora lambe
Desde o nascer do sol ao despontar de lua,
Areia dura e nua.
.
Depois bebera a água quente e suja
Onde o mulói pousou o seu cachimbo outrora,
Ouvira, caminhando, o canto da coruja
E quase ao pé do mar lhe surpreendera a aurora.
.
Quenguelequêze!… Quenguelequêze!…
Quenguelequêêêzeee
.
Pisara muito tempo uma vermelha areia,
E àquela dura hora à qual o sol apruma
Uma mulher lhe deu numa pequena aldeia
Um pouco de água e “fuma”.
.
guelequêêêzeee!…
.
Descera o vale. O sol quase cansado
Desenrolara esteiras
Que caíram silentes pelo prado
Cobrindo até distante as maçaleiras…
.
Quenguelequêêê…
.
Vinha pedir pousada
Ficava ainda distante o fim de sua jornada,
Lá muito para baixo, a terra onde os parentes
Tinham ido buscar os ouros reluzentes
Para comprar mulheres, pano e gado
E não tinham voltado…
.
Quenguelequêze! Quenguelequêêêze!…
Surgira a lua nova
E a grande nova
Quenguelequêze! ia de boca em boca
Numa alegria enorme, numa alegria louca,
Traçando os rostos de expressões estranhas
Atravessando o bosque, aldeias e montanhas,
Loucamente…
Perturbadoramente…
Danças fantásticas
Punham nos corpos vibrações elásticas,
Febris,
Ondeando ventres, troncos nus, quadris…
E ao som das palmas
Os homents cabriolando
Iam cantando
.
Medos de estranhas, vingativas almas,
Guerras antigas
Com destemidas ímpias inimigas
E obscenidades claras, descaradas,
Que as mulheres ouviam com risadas
Ateando mais e mais
O rítmico calor das danças sensuais.
.
Quenguelequêze!… Quenguelequêze!…
.
Uma mulher de quando em quando vinha
Coleava a espinha,
Gingava as ancas voluptuosamente
E posta diante do homem, frente a frente,
Punha-se a simular os conjugais segredos.
Nos arvoredos
la um murmúrio eólico
Que dava à cena, à luz da lua um quê diabólico…
Queeezeee… Quenguelequêêêzeee!…
.
Entanto uma mulher saíra sorrateira
Com outra mais velhinha,
Dirigira-se na sombra à montureira
Com uma criancinha.
Fazia escuro e havia ali um cheiro estranho
A cinzas ensopadas,
Sobras de peixe e fezes de rebanho
Misturadas…
O vento perpassando a cerca de caniço
Trazia para fora um ar abafadiço
Um ar de podridão…
E as mulheres entraram com um tição.
E enquanto a mais idosa
Pegava criança e a mostrava à lua
Dizendo-lhe: “Olha, é a tua”,
A outra erguendo a mão
.
Lançou direita à lua a acha luminosa
O estrepitar das palmas foi morrendo
A lua foi crescendo… foi crescendo
Lentamente…
Como se fora em branco e afofado leito
Deitaram a criança rebolando-a
Na cinza de monturo.
E de repente,
Quando chorou, a mãe arrebatando-a
Ali, na imunda podridão, no escuro
Lhe deu o peito
O pai então chegou,
Cercou-a de desvelos,
De manso a conduziu com [sic] os cotovelos
Depois tomou-a nos braços e cantou
Esta canção ardente:
Meu filho, eu estou contente.
Agora já não temo que ninguém
Mofe de ti na rua
E diga, quando errares, que tua mãe
Te não mostrou à lua.
Agora tens abertos os ouvidos
P’ra tudo compreender.
Teu peito afoitará impávido os rugidos
Das feras sem tremer.
Meu filho, eu estou contente
Tu és agora um ser inteligente.
E assim hás-de crescer, hás-de ser homem forte
Até que já cansado
Um dia muito velho
De filhos rodeado,
Sentindo já dobrar-se o teu joelho
Virá buscar-te a Morte…
Meu filho, eu estou contente.
Meu susto já lá vai.
.
Entanto o caminheiro olhou para a criança,
Olhou bem as feições, a estranha semelhança,
E foi-se embora.
Na aldeia, lentamente,
O estrepitar das palmas foi morrendo…
E a lua foi crescendo…
Foi crescendo…
Como um ai…
.
Quando rompeu ao outro dia a aurora
Ia já longe… muito longe… o verdadeiro pai…
. . .
António Rui de Noronha nasceu na então Lourenço Marques – atual Maputo – Moçambique, em 1909. Mestiço, de pai indiano, de origem brâmane, e de mãe negra, foi funcionário público (Serviço de Portos e Caminho de Ferro) e jornalista. O autor colaborou na imprensa escrita de Moçambique, notadamente em O Brado Africano, com apenas 17 anos de idade. Esta produção inicial, que se reduziram apenas a três contos, e que correspondem ainda a uma fase de afirmação literária, virá a ser prosseguida a partir de 1932, com uma intervenção mais activa na vida do jornal, chegando mesmo a integrar o seu corpo directivo.
Uma desilusão amorosa, causada pelo preconceito racial, fez, segundo os seus amigos, com que o escritor se deixasse morrer no hospital da capital de Moçambique, com 34 anos, em 1943.
Seu professor de Frances, Dr. Domingos Reis Costa reuniu, selecionou e revisou 60 poemas para a edição póstuma intitulada Sonetos (1946), editado pela tipografia Minerva Central.
Sua obra completa está reunida em Os meus versos, publicada em 2006, com organização, notas e comentários de Fátima Mendonça.
Rui de Noronha é considerado o precursor (mais jovem) da poesia moderna Moçambicana.