“Esta canção ardente”: “Quenguelequêze!” de Rui de Noronha

ZP_Lua nova

Rui de Noronha

(poeta e contista, Maputo, Moçambique, 1909 – 1943)

Quenguelequêze!”

.

Durante o período de reclusão, que vai do nascimento à queda do cordão umbilical das crianças, o pai não pode entrar na palhota sob pretexto algum e ao amante da mãe de uma criança ilegítima é vedado, sob pena de a criança morrer, passar nesse período defronte da palhota. O período de reclusão, entre albumas famílias de barongas, é levado até ao aparecimento da primeira lua nova, dia de grande regozijo e em que a criança, depois de uma cerimónia especial denominada “iandlba”, aparece publicamente na aldeia, livre da poluição da mãe.

.

Quenguelequêze!… Quenguelequêze!…

Quenguelequêêêzeee

Quenguelequêêêzeee

.

Na tarde desse dia de janeiro

Um rude caminheiro

Chegara à aldeia fatigado

De um dia de jornada.

E acordado

Contara que descera à noite a velha estrada

Por onde outrora caminhara Guambe

E vento não achando a erva agora lambe

Desde o nascer do sol ao despontar de lua,

Areia dura e nua.

.

Depois bebera a água quente e suja

Onde o mulói pousou o seu cachimbo outrora,

Ouvira, caminhando, o canto da coruja

E quase ao pé do mar lhe surpreendera a aurora.

.

Quenguelequêze!… Quenguelequêze!…

Quenguelequêêêzeee

.

Pisara muito tempo uma vermelha areia,

E àquela dura hora à qual o sol apruma

Uma mulher lhe deu numa pequena aldeia

Um pouco de água e “fuma”.

.

guelequêêêzeee!…

.

Descera o vale. O sol quase cansado

Desenrolara esteiras

Que caíram silentes pelo prado

Cobrindo até distante as maçaleiras…

.

Quenguelequêêê…

.

Vinha pedir pousada

Ficava ainda distante o fim de sua jornada,

Lá muito para baixo, a terra onde os parentes

Tinham ido buscar os ouros reluzentes

Para comprar mulheres, pano e gado

E não tinham voltado…

.

Quenguelequêze! Quenguelequêêêze!…

Surgira a lua nova

E a grande nova

Quenguelequêze! ia de boca em boca

Numa alegria enorme, numa alegria louca,

Traçando os rostos de expressões estranhas

Atravessando o bosque, aldeias e montanhas,

Loucamente…

Perturbadoramente…

Danças fantásticas

Punham nos corpos vibrações elásticas,

Febris,

Ondeando ventres, troncos nus, quadris…

E ao som das palmas

Os homents cabriolando

Iam cantando

.

Medos de estranhas, vingativas almas,

Guerras antigas

Com destemidas ímpias inimigas

E obscenidades claras, descaradas,

Que as mulheres ouviam com risadas

Ateando mais e mais

O rítmico calor das danças sensuais.

.

Quenguelequêze!… Quenguelequêze!…

.

Uma mulher de quando em quando vinha

Coleava a espinha,

Gingava as ancas voluptuosamente

E posta diante do homem, frente a frente,

Punha-se a simular os conjugais segredos.

Nos arvoredos

la um murmúrio eólico

Que dava à cena, à luz da lua um quê diabólico…

Queeezeee… Quenguelequêêêzeee!…

.

Entanto uma mulher saíra sorrateira

Com outra mais velhinha,

Dirigira-se na sombra à montureira

Com uma criancinha.

Fazia escuro e havia ali um cheiro estranho

A cinzas ensopadas,

Sobras de peixe e fezes de rebanho

Misturadas…

O vento perpassando a cerca de caniço

Trazia para fora um ar abafadiço

Um ar de podridão…

E as mulheres entraram com um tição.

E enquanto a mais idosa

Pegava criança e a mostrava à lua

Dizendo-lhe: “Olha, é a tua”,

A outra erguendo a mão

.

Lançou direita à lua a acha luminosa

O estrepitar das palmas foi morrendo

A lua foi crescendo… foi crescendo

Lentamente…

Como se fora em branco e afofado leito

Deitaram a criança rebolando-a

Na cinza de monturo.

E de repente,

Quando chorou, a mãe arrebatando-a

Ali, na imunda podridão, no escuro

Lhe deu o peito

O pai então chegou,

Cercou-a de desvelos,

De manso a conduziu com [sic] os cotovelos

Depois tomou-a nos braços e cantou

Esta canção ardente:

Meu filho, eu estou contente.

Agora já não temo que ninguém

Mofe de ti na rua

E diga, quando errares, que tua mãe

Te não mostrou à lua.

Agora tens abertos os ouvidos

P’ra tudo compreender.

Teu peito afoitará impávido os rugidos

Das feras sem tremer.

Meu filho, eu estou contente

Tu és agora um ser inteligente.

E assim hás-de crescer, hás-de ser homem forte

Até que já cansado

Um dia muito velho

De filhos rodeado,

Sentindo já dobrar-se o teu joelho

Virá buscar-te a Morte…

Meu filho, eu estou contente.

Meu susto já lá vai.

.

Entanto o caminheiro olhou para a criança,

Olhou bem as feições, a estranha semelhança,

E foi-se embora.

Na aldeia, lentamente,

O estrepitar das palmas foi morrendo…

E a lua foi crescendo…

Foi crescendo…

Como um ai…

.

Quando rompeu ao outro dia a aurora

Ia já longe… muito longe… o verdadeiro pai…

.     .     .

ZP_Rui de Noronha

António Rui de Noronha nasceu na então Lourenço Marques – atual Maputo – Moçambique, em 1909. Mestiço, de pai indiano, de origem brâmane, e de mãe negra, foi funcionário público (Serviço de Portos e Caminho de Ferro) e jornalista. O autor colaborou na imprensa escrita de Moçambique, notadamente em O Brado Africano, com apenas 17 anos de idade. Esta produção inicial, que se reduziram apenas a três contos, e que correspondem ainda a uma fase de afirmação literária, virá a ser prosseguida a partir de 1932, com uma intervenção mais activa na vida do jornal, chegando mesmo a integrar o seu corpo directivo.

Uma desilusão amorosa, causada pelo preconceito racial, fez, segundo os seus amigos, com que o escritor se deixasse morrer no hospital da capital de Moçambique, com 34 anos, em 1943.

Seu professor de Frances, Dr. Domingos Reis Costa reuniu, selecionou e revisou 60 poemas para a edição póstuma intitulada Sonetos (1946), editado pela tipografia Minerva Central.

Sua obra completa está reunida em Os meus versos, publicada em 2006, com organização, notas e comentários de Fátima Mendonça.

Rui de Noronha é considerado o precursor (mais jovem) da poesia moderna Moçambicana.

.     .     .     .     .