“Xigubo”(1964): seleção de poemas do poeta moçambicano José Craveirinha (1922 – 2003)

Illustrações de José Craveirinha Junior., da segunda edição de “Xigubo”(1980, Edições 70)

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Xigubo”
(para Claude Coufon)
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Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!
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Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
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Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.
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Dum-dum!
Tantã!
E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
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E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.
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Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.
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E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio.

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(1958)

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Grito Negro”
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Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!
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Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!
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Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.
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Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!
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Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
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Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!

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África”

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Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

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Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.
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E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls-Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.
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E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de ‘strip-tease’ e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina a vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das suas balas e dos seus gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.
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Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
em rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas de chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens inventaram
a confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Manor e Sharpeville*
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre os ninhos mornos de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas ‘Made in Germany’
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho ‘cowboy’ do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo no Japão.
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Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meus povo.
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E ao som másculo dos tantãs tribais o Eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros…
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

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*Cato Manor e Sharpeville – nomes de lugares onde ocorreram repressões policiais sangrentas na África do Sul contra trabalhadores africanos

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Illustrações de José Craveirinha Junior., da segunda edição de “Xigubo”(1980, Edições 70)

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Manifesto”

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Oh!
Meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros como insurrectas
grandes luas de pasmo na noite mais bela
das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze.

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Como pássaros desconfiados
incorruptos voando com estrelas nas asas meus olhos
enormes de pesadelos e fantasmas estranhos motorizados
e minhas maravilhosas mãos escuras raízes do cosmos
nostálgicas de novos ritos de iniciação
dura da velha rota das canoas das tribos
e belas como carvões de micaias
na noite das quizumbas.
E a minha boca de lábios túmidos
cheios da bela virilidade ímpia de negro
mordendo a nudez lúbrica de um pão
ao som da orgia dos insectos urbanos
apodrecendo na manhã nova
cantando a cega-rega inútil das cigarras obesas.

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Oh! E meus belos dentes brancos de marfim espoliado
puros brilhando na minha negra reencarnada face altiva
e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho
o cálido encantamento selvagem da minha pele tropical.

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Ah! E meu
corpo flexível como o relâmpago fatal da flecha de caça
e meus ombros lisos de negro da Guiné
e meus músculos tensos e brunidos ao sol das colheitas e da carga
e na capulana austral de um céu intangível
os búzios de gente soprando os velhos sons cabalísticos de África.

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Ah!
o fogo
a lua
o suor amadurecendo os milhos
a grande irmã água dos nossos rios moçambicanos
e a púrpura do nascente no gume azul dos seios das montanhas.

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Ah! Mãe África no meu rosto escuro de diamante
de belas e largas narinas másculas
frementes haurindo o odor florestal
e as tatuadas bailarinas macondes
nuas
na bárbara maravilha eurítmica
das sensuais ancas puras

e no bater uníssono dos mil pés descalços.

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Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do bréu
e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado
o tótem mais invencível tótem do Mundo
e minha voz estentórea de homem do Tanganhica,
do Congo, Angola, Moçambique e Senegal.

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Ah! Outra vez eu chefe zulo
eu azagaia banto
eu lançador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores.
Eu tambor
Eu suruma
Eu negro suaíli
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo
Eu insubordinada árvore de Munhuana
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
E xiguilo no batuque.
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique.

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Illustrações de José Craveirinha Junior, da segunda edição de “Xigubo”(1980, Edições 70)

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O Festival Internacional do Tambor Muhtadi: “Quero ser tambor” / “I want to be a drum”

ZP_Muhtadi Festival in Toronto_June 9th 2013_AA performer deeply involved in the energy of The Drum_Muhtadi International Drumming Festival in Toronto_June 9th 2013_photograph by Elisabeth Springate

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José Craveirinha

(1922–2003, Maputo, Moçambique)

Quero ser tambor”

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Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

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Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

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Nem nada!

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Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

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Eu!

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Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

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Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

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Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

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Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

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ZP_Muhtadi Festival in Toronto_June 9th 2013_CIsshin Daiko (“One Heart” Japanese-traditional drummers)_Muhtadi International Drumming Festival in Toronto_June 9th 2013_photograph by Elisabeth Springate

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José Craveirinha

I want to be a drum”

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The drum is all weary from screaming

Oh ancient God of mankind
let me be a drum because I want to be a drum
body and soul – just a drum
just a drum playing in the hot tropical night.

I don’t want to be a flower born in the forest of despair
I don’t want to be a river flowing toward the sea of despair
I don’t want to be an assegai spear tempered in the hot flame of despair
Not even a poem forged in the searing pain of despair.

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Nothing like that – I want to be a drum!

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Just a drum worn from wailing in the full moon of my land
Just a drumskin cured in the sun of my land
Just a drum carved from the solid tree trunks of my land.

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Just a drum splitting the bitter silence of Mafalala village
Just a drum worn from sitting in on the batuque jam-sessions of my land
Just a drum lost in the darkness of the lost night.

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Oh ancient God of mankind
I want to be a drum – just a drum
not a river
not a flower
not an assegai spear just for now
and not even a poem – I don’t want to be a poem.
Only a drum echoing like the song of strength and life
Only a drum night and day,
day and night, only a drum
until the final great batuque jam session!
Oh ancient God of mankind
let me be a drum
just a drum!

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Mafalala – a neighbourhood or bairro in the city of Maputo, Mozambique

batuque – festival of drumming

assegai – an African hardwood, used to make the iron-tipped “zagaia” spear

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ZP_Muhtadi Festival in Toronto_June 9th 2013_BDhol Circle_Muhtadi International Drumming Festival in Toronto_June 9th 2013_photograph by Elisabeth Springate

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José Craveirinha  é considerado o poeta maior de Moçambique. Em 1991, tornou-se o primeiro autor africano galardoado com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa.

José Craveirinha (1922 – 2003) was a Mozambican journalist, short-story writer, and poet.  He was the child of a Portuguese father and a black (Ronga) Mozambican mother.  An impassioned supporter of the anti-Colonial group Frelimo during the Portuguese Colonial War/War of Liberation, he was imprisoned from 1966 to 1974.  Craveirinha was one of the pioneers of Poesia Moçambicana da Negritude, a literary movement that highlighted African traditions and the reaffirmation of African values.

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Master drummer Muhtadi Thomas came to Canada in 1974 from Trinidad and Tobago.  He settled in Toronto where he has established himself as the premier percussion-instrument mentor among students in the city’s school and community programmes.  He plays djembe, bongos, congas, timbales, plus T&T’s steel pan – among other world drums.   June 8th and 9th, 2013, marked the 14th year of the Muhtadi International Drumming Festival.

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Our thanks to Professor Kwachirere of the University of Zimbabwe for his Portuguese-into-English poem translation

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